No escritório eu era menina-mulher brincando de executiva. Usava blazer, mas não sabia nem subir no salto, que afundava no carpete cinza e sem graça.
No começo, pra compensar a monotonia, andava com a minha mochila florida. Antes do início de qualquer reunião com eles, comentavam o quanto eu era nova. Eu respondia, bem-humorada, que eram “minhas bochechas de criança”. Por dentro sentia o nó na garganta, porque sabia da verdade: era a menina com “bochechas de criança” que seria chefe deles em um ano ou dois, por isso o questionamento desconfortável.
A reunião se transformava numa aula particular - deles para mim - de qualquer que fosse o assunto. Às vezes até sobre meu próprio trabalho, que eu fazia bem feito todos os dias. Eu era aluna exemplar, ouvia com atenção e calma (até tomava nota).
Dentro das salas de reunião, meus comentários eram acompanhados de feições incrédulas e altas gargalhadas. Nos corredores, recebia beijos de longe, com caras maliciosas, apelidos íntimos sem intimidade, de homens com o dobro da minha idade.
Era uma quinta-feira à tarde quando o escritório cheio ria de uma piada que brincava com uma mulher que foi espancada por um famoso.
Olhei para a minha mochila, e pensei: acabou. Eu já não usava mais a florida, usava uma preta. Era como se ela tivesse desbotado junto comigo. Me levantei e nunca mais voltei.
Mas não acabou aí, tive que revisitar essa mágoa por várias vezes.
Me pediram para recontar a minha história para pessoas diferentes da empresa: RH, meus líderes, e como estava num programa trainee que era de grande visibilidade, pediram ate pra eu falar com o CEO e o VP pra eles me convencerem a ficar, mas eu recusei.
A cada vez que repetia a história e descrevia o rosto indescritível dos homens que me diminuíam, as lágrimas também iam cessando.
Algumas vezes desejei ter inventado qualquer desculpa ao invés de contar a verdade, que me esgotava e me tornava mais fria ao mesmo tempo.
Apesar da tristeza que me consumia, não queria parar de sentir raiva e revolta para lembrar de nunca mais me esquecer.
Eles diziam que faltou paciência e que eu deveria ter ensinado esses homens a se comportarem, dizer o que eles faziam de errado, já que, por serem de outras gerações, não me entendiam. Ou seja, além de aturar aulas particulares para as minhas bochechas eu teria que agora ser a adulta e madura da relação.
Me disseram que eu estava largando uma carreira brilhante por situações pontuais.
Minhas pares e chefes mulheres diziam que, se pudessem, também sairiam.
Me sentia impotente e fraca por não poder ficar pra ajudar e tentar reverter a situação para algumas de nós. Mas com o tempo entendi que o mais importante era conseguir cuidar de mim. Minhas bochechas entregavam mesmo a idade, e eu não conseguia mais crescer ali.
Eu gostaria de voltar lá hoje e dizer para essa menina-mulher que ela não estava doida e nem sozinha!
Eu me daria um abraço e diria que só aguentei esse nó na garganta porque me sentia inadequada em reclamar, já que todo o sistema prefere passar pano.
Diria pra mim que é importante sempre estar disposta a aprender - mas com quem quiser tro-car, porque ninguém é melhor do que eu.
Que de agora em diante não irei tentar me encaixar num lugar onde não caibo inteira.
Eu e minha mochila florida.
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