O conto de fadas para mim era casar, ter filhos, e ser fiel - até que a morte nos separe.
Esse era o certo e o resto era errado, pecado. Essa era felicidade prometida.
Eu coube nesse padrão por um tempo. Eu casei apaixonada, minha rotina de casada era confortável e me dava status.
Estava feliz brincando de casinha com direito a fazer comidinhas, lavar e passar a roupa do príncipe encantado.
Podia transar sem sentir culpa, tinha um carro só meu, e podia chegar tarde em casa porque estava junto com o meu guarda costas.
Para pagar as contas era só dar um cheque, sem nem precisava anotar o valor, pois ele fazia tudo e mais um pouco pra ter o controle de tudo. Eu adorava!
Eu assumia um lugar de inferioridade e permissividade porque me interessava, não tinha que brigar por coisas que eu julgava pequenas e quando eu realmente me impunha eu conseguia o que queria. Tinha momentos em que eu era mimada e retribuía com submissão.
Mas caso eu não fizesse o que as regras absolutas mandavam, a repreensão acontecia.
Uma dinâmica bombástica!
Tinha preguiça de discutir e em geral deixava as pessoas me conduzirem.
Ter um marido era tudo que eu precisava naquele momento, me ajudou a não sentir falta da minha mãe, recém falecida. Ela era pessoa mais doce que conheci.
Mas o melhor de estar casada era estar longe do olhar do meu pai, que antes ocupava esse mesmo papel patriarcal.
Quando meu pai morreu, muitos anos depois, vivi o primeiro momento de liberdade da minha vida.
Nem sabia o que fazer...
Aos poucos comecei a não aceitar algumas “ordens" e daí a competição entre o casal se acirrou. Me lembro de olhar pros aviões que passavam e pensar quem seria o felizardo lá dentro indo pra algum lugar bem longe.
Tinha um grito abafado em minha garganta. Minha casa se tornou insuportável, tinha uma névoa sombria em cima dela, era fria.
Quanto mais eu saia de casa, me interessava por atividades novas, cuidava de minha alimentação, ficava magra, bonita, mais olhares repressores eu recebia dele.
E também tive que lutar contra preconceitos de amigos "que nunca foram”.
Isso tudo me sufocou tanto que muitas vezes desejei a morte para terminar algo que eu tinha prometido levar até o fim.
Eu não conseguia mais viver esse personagem para a qual fui criada. Queria quebrar esses padrões que me foram impostos, mas era difícil.
Me sentia como uma lagarta dentro do casulo, apertada.
Eu tinha recebido desde criança uma lavagem cerebral e não sabia mais pelo que valia a pena lutar.
Não via uma saída que não magoasse a todos, então continuava me magoando.
Precisei de muitos anos para descobrir que era uma mulher interessante, que podia ser amada fora desses termos, que era inteligente (não era tonta?), que existia um universo lá fora pra eu desbravar, e que meus filhos iam ficar bem, já eram adultos agora.
Eu já estava preparada pra me responsabilizar por mim, por meus atos, minhas decisões.
Estava pronta pra errar e acertar, e escolher como viver. Isso era muito poderoso!
Eu gostaria de voltar lá e dizer para aquela mulher, que olhava para os aviões pensando em fugir, que ela acharia o caminho. Que o corte, por pior que pareça, é momentâneo e passa. Depois viria a melhor coisa do mundo: autonomia.
Hoje olho pra trás e sinto orgulho por ter sido corajosa.
Não tenho mais vergonha de mostrar a minha a criança impulsiva, alegre e amorosa que sempre fui. Aquela que não cabia nos padrões e era sempre desconsiderada. Agora ela pode acordar e dormir comigo.
Hoje virei borboleta e vôo por aí, de flor em flor, e sei que o pólen que carrego vai germinar.
Isso pra mim é paz. Isso é missão cumprida.
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Lembrando que esse é um projeto de acolhimento através de histórias anônimas, manda a sua história pra mim:
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