Eu, por volta dos 9 anos, dormia o sono da inocência em um beliche junto dos meus irmãos.
Acordava todos os domingos ao som dos sinos e músicas anunciando o horário da missa das crianças, vindos da igreja matriz da minha cidade, que ficava ao lado de casa.
Minha mãe sempre me fazia uma mamadeira quentinha antes de ir para a casa do Papai do Céu, assistir a missa e fazer a catequese. Confesso que deixei a mamadeira bem tarde.
Tão felizes eram os meus domingos!
Porém houveram dois desses domingos que não foram assim, dos quais infelizmente me lembro todos os dias, quase 50 anos depois.
Enquanto dormia senti uma sensação estranha: alguém passava a mão sobre aquele corpo indefeso e puro. Escutei uma voz sussurrando psiuuuu, para que ninguém fosse acordado, além de mim.
Com um sentimento de repugnância eu me esquivei, e me encolhi até conseguir me levantar. Os meus olhos ficaram presos naquele sujeito horrível com seu membro exposto no meio das pernas. Nunca havia visto nada igual. Me senti insegura e com medo.
Lembrei dos ensinamentos de meu pai e minha mãe: tudo que eu fizer e tiver que ser escondido não é certo.
Então saí do quarto e meu tio - irmão da minha mãe - lá ficou.
Fui até a cozinha, onde a minha mãe estava com seus afazeres. Apenas cheguei perto e pedi o meu leite.
Algum tempo depois, em um outro domingo, ele voltou… As mesmas sensações debaixo da minha camisola branca de bolinhas vermelhas e minha calcinha de algodão.
Dessa vez consegui falar para ele: vou contar isso para meu pai!
Uma nuvem se fez em meus olhos, e ele sumiu. E lá fui eu, como sempre, para a igreja.
Na minha inocência eu achava que também era pecadora. Como se eu tivesse feito aquele pecado, por não ter tido coragem de contar pra ninguém e ele ficar impune.
Eu achava que Jesus estava triste comigo… Se eu tivesse gritado, se eu tivesse feito uma outra coisa qualquer...sei lá né. Eu era tão pequena.
O pecado hoje eu sei que não fui eu que cometi. Mas eu me sentia mal em saber que escondia algo dos meus pais... E esse era o meu pecado.
Nesse dia, ao chegar na igreja, me ajoelhei e olhei para a cruz chorando e pedindo perdão pelo pecado que cometi.
Com nojo de mim mesma senti uma pontada de felicidade, lembrando que naquela mesma manhã de domingo, a catequista iria nos levar ao topo da torre da igreja para vivenciarmos a badalada dos sinos.
Delém... Delém... Foram 11 badaladas, que ecoam até hoje na minha memória.
Depois que ameacei contar para o meu pai ele parou, apesar de, durante a minha adolescência, ainda tentar me cercar na casa da minha avó. Eu conseguia me esquivar, porém era obrigada a conviver com ele nos almoços de domingo. Eu tenho nojo dele.
Nunca contei para o meu pai, porque ele era muito bravo. Eu tinha medo que ele o matasse e fosse preso. Tinha também vergonha e medo de contar.
Contei pra minha mãe, aos 23 anos, num desabafo daqueles, quando quis me separar do pai da minha filha. Ela não fez nada, nunca mais nem tocou no assunto e a relação dela com o irmão nunca mudou.
Meu tio traiu a minha mãe, o meu pai... Todos nós.
Hoje a minha filha e o meu segundo marido sabem.
Tenho problemas de confiança... Penso nos meus filhos e netos e sofro quando sei que podem estar correndo algum perigo.
Sou professora, trabalho com a educação e já detectei 3 abusos de crianças.
Se pudesse voltar lá eu diria para aquela menina o que ainda digo diariamente quando me encontro com ela: você é forte, corajosa e não precisa ter medo.
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