Enquanto criança eu não tinha noção de como eram difíceis aqueles tempos, e nem de que vivia de perto a pobreza.
As minhas recordações vem desde os 3 anos de idade. Eu morava em sítios - no plural - pois os meus pais se mudavam constantemente.
Recordo da minha primeira casa, de chão batido, que tinha um riacho perto, onde eu brincava durante o verão.
Levávamos nosso almoço na roça, eu e a minha mãe. Subíamos por uma trilha, até o topo do morro, onde estava a plantação de feijão.
Às vezes derrubavam árvores ou faziam queimadas, e eu juntava galhos para limpar a terra. Não recordo de ter visto uma cidade, nem se quer um vilarejo e não imaginava outro mundo além daquele lugar.
Logo já era outro sítio, de plantação de algodão, e tinha vizinhos e crianças para brincar. O trabalho não era fácil.
Com 7 anos eu sabia que deveria estudar, e era o meu sonho, já que os meus irmãos já estavam na escola. Mas eu não fui, e foi triste demais.
Minha mãe disse que eu tinha que trabalhar, que mulher não precisava de estudos e sim aprender a cuidar da casa e trabalhar na roça.
Fiquei com muita raiva dela, mas a minha vida seguiu entre bolinhas de gude com meus irmãos, brincadeiras de casinha, criação de bonecas de pano e caça de passarinhos com estilingue.
Quando chovia eu tomava banhos de chuva e brincava nas enxurradas.
Lá tinha mina d'água, onde eu buscava com balde pra cozinhar, beber e tomar banho. Eu achava injusto as mulheres irem buscar água ao voltar da roça, enquanto os homens iam descansar.
Eu não podia brincar com meninos, mas mesmo assim brincava, e quase sempre apanhava por isso. Fui uma criança bem agitada e queria sempre aprender coisas novas. Além das brincadeiras “de menina” eu andava a cavalo e brincava de bola - aliás eu era a goleira do time dos meninos.
Eu ia além do que me era determinado, e mesmo sabendo das consequências, eu fazia. Fui resistente ao sistema, o que irritava a minha mãe, e então ela me batia.
Nessa época eu sentia que ela não gostava de mim, e me penalizava por isso.
Por muito tempo procurei entender as razões dela e hoje imagino que me batia porque não tinha a minha força emocional, capaz de se levantar contra o que era imposto.
Outro ano chegou e a minha expectativa de estudar se foi, pois a minha mãe disse que eu ia cuidar de um bebê de uma família que estava chegando nas redondezas.
Eu pensava: como podem deixar uma criança comigo, se eu tinha 8 anos?
Lembro que por duas vezes deixei o bebê cair e ele ainda não tinha um ano.
Hoje sei que todos os adultos presentes foram irresponsáveis demais, mas talvez a necessidade os obrigasse àquela situação.
Não havia energia elétrica na minha casa e tampouco o meu entendimento sobre a relação entre os meus pais. Lembro de ver eles brigando e do meu pai ficar dias fora de casa, enquanto a minha mãe e os filhos estudavam e trabalhavam.
Com 9 anos comecei a estudar, que alegria! Era uma felicidade ter um caderno, e eu lembro com muita nostalgia do cheiro deles.
Logo veio mais uma mudança de sítio. Ter que fazer amigos constantemente era complicado, e eu fazia um esforço para ser legal o tempo todo, para ser aceita nos novos grupos.
Nessa nova moradia tinha pés de frutas, gado, canavial e iríamos cuidar de plantação de cana. Naquele ano a seca castigou e lembro do gado morrendo no pasto, do poço d'água seco e que tínhamos que buscar água muito longe, em outro sítio que tinha poço artesiano. A nossa sobrevivência foi caldo de cana, melaço e rapadura. Não tinha comida: passamos fome e até sede.
Fomos então para outro lugar, dessa vez feio, triste e amedrontador.
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