No dia da morte dele, eu fui a única que comprou uma coroa. Se foi a compaixão que sinto por qualquer ser vivo, se foi para coroar a morte do meu primeiro abusador - meu pai - que me violentou por toda infância e adolescência, não sei.
Minha primeira lembrança de abuso aconteceu quando eu tinha seis anos. Nessa noite acordei com ele me batendo na sala. Eram muitos tapas e socos. Lembro do xixi quente na minha roupa. Só não lembro de quando parou de bater. Ele me espancava com frequência e sem motivo. Nunca entendi porque estava apanhando. Quando ele não batia, me beijava na boca, de língua. Eu paralisava, não reagia, não entendia que era abuso, sentia muito medo dele.
Morávamos no interior, numa casa de madeira antiga, sem forro. Eu tinha uma irmã e um irmão mais velho. Dormíamos juntos em uma cama de casal.
Noutra noite, meu irmão chegou correndo e disse: "o pai está vindo te pegar". Assustada, levantei e pulei a janela. Atravessei a cerca de arame que separava a casa de um pasto enorme. Corri todo o pasto, passando por cima de planta, boi dormindo, quase cai, mas cheguei do outro lado. Então segui correndo em direção ao cemitério, na rua seguinte à nossa. O muro era baixo, pulei novamente, correndo pelo corredor central, passando por uma cruz rodeada de velas.
Bem no meio do cemitério encontrei um túmulo todo de piso bege. Não havia placa, nem nomes ou datas. Parecia um travesseiro, era quentinho e sem vasos. Eu deitei em cima do túmulo, fiquei olhando o céu. No cemitério, eu estava segura, em paz no silêncio. Eu não tinha mais medo, tinha um refúgio para não apanhar do meu pai. Por várias vezes, eu ouvia minha mãe me chamar pelas ruas, mas não respondia. Quando eu sentia que ninguém mais me procurava, eu ia para casa da minha avó materna, ela já sabia o motivo, me acolhia. E assim foi a minha infância, regada de violência de todas formas, seja comigo, seja com minha mãe ou com os meus irmãos.
Na adolescência vivi um intervalo de tranquilidade, quando estava internada no convento das freiras. Cheguei lá aos 9, demorei para me adaptar. Mas quando isso aconteceu eu fiquei muito bem. Estava feliz com a rotina de oração, cuidados e estudos. As freiras gostavam de mim e eu delas. Não passava fome, como em casa. E essa vivência me sustentou por muito tempo.
Decidi, porém, sair, para ficar perto da minha mãe. Tinha então 14 anos e estava com o coração mais leve. A vida, que pena, cuidou de me lembrar como era antes disso. Numa noite de domingo, quando voltava pra casa depois de uma matinê na discoteca do bairro, fui agarrada por um rapaz e estuprada na porta de uma igreja. Ele bateu minha cabeça no chão, rasgou meu jeans até que tive a ideia de fingir náuseas. Funcionou: ele se afastou e eu corri, bati na primeira casa e fui socorrida. Foi nessa noite que perdi a virgindade.
Fui à delegacia com a minha mãe, mas o rapaz não foi preso e o irmão dele passou a me perseguir. Foi período difícil.
Próximo de completar 15 anos, conheci o pai dos meus 3 filhos. Namoramos quase 3 anos; logo depois fomos morar juntos porque eu estava grávida. Meu casamento foi um inferno. Fui agredida quando meu filho nasceu: o bebê chorava de fome e meu marido me batia por isso. Na primeira vez, recebi um murro de mão fechada no rosto e ouvido. Eu cai no chão, levantei, mas ele deu outro, então eu cai e fiquei no chão chorando. Foram 12 anos sobrevivendo a uma relação de violência, humilhação, miséria e doenças.
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