Zero em Comportamento. Uma conversa com Jorge Roque
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Em breve a dor será tida como uma substância ilícita, devendo ser erradicada em regime preventivo com recurso a uma panóplia de fármacos, desde logo estabilizadores de humor. E quem a ela responder em público será alvo de punição. Não há direito a incomodar os que estão a gozar os benefícios de uma existência radiante, e não merecem ser confrontados com o desmazelo dos que se recusam a cumprir com o programa. Está em fase de teste a vacina contra todo o tipo de sofrimentos, os físicos e sobretudo os de ordem da consciência. Como se sabe, "quando dói demais endoidece-se". Por essa razão, o programa de saúde mental forçada manda extirpar essas formas de apreensão degenerada da realidade. Era evidente onde tudo isso nos levaria. Dos relatos de alguns que se recusaram a fazer os tratamentos, têm sido colhidas amostras desse género de desespero que vinha envenenando as nossas produções líricas. De um dos sujeitos que escondia os comprimidos debaixo do colchão, recolhemos o seguinte testemunho: "Músculos tensos, grito parado, a inquirição prossegue por entre camadas de angústia cerrada. Fura, brita, escava, alonga túneis por onde avança o corpo cercado. Por vezes tem a espessura de montanhas, muros sobre muros que não acabam." O livre arbítrio provou ser uma empreendimento ruinoso, e os accionistas exigiram medidas de contenção. Como registo o nosso paciente, "o maior problema das crises económicas é serem sempre o princípio de uma crise moral. A razão é muito simples: a moral é cara e sustentá-la tende a ser considerado desperdício". Assim se provou que era preciso revirar, desfigurar e, por fim, dar cabo da moral. Aos que continuarem a resistir aos nossos paraísos distractivos, poderá ser instrutivo irem passar uns dias em observação daqueles que temos na condição química natural, e sujeitos a cativeiro. Não lhes é dado mergulhar no êxtase químico. Temos poetas para redigirem as bulas. Depois há esses que precisam ser esmagados, com as suas convicções grotescas, os seus escritos odiosos, as suas formas de organização terrorista. Considere-se o conteúdo de uma nota retirada do diário de um deles: "Quero que se foda o sublime. A minuciosa construção do absoluto literário. Assim sem emendas e em rigoroso vernáculo, parece-me mais exacto. Quero que se foda o sublime (desculpem-me a repetição). Prefiro portas fechadas, casas destruídas, chaves de pouco ou nenhum uso para gestos de pouca ou nenhuma glória que são o absoluto onde me posso sentar para beber mais um copo deste vinho que te pinta os lábios e te acende nos olhos esse fulgor de luz, esse pulsar de salto, onde me lanço para voltar ou não voltar, mas ter cumprido do sangue o impulso. Quero que se foda o sublime (começa a saber-me bem repeti-lo, o ritmo sincopado conjugado com a limpidez expressiva). Estou a dizer-te ama comigo, sofre comigo, morre comigo um pouco mais devagar." [Os excertos citados são da autoria do nosso convidado.]
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