Episodes
Se o nosso tempo não nos diz p**o, todos os dias parecem ser domingo neste povoado à beira-mar e que eles se esqueceram de bombardear. Era mais ou menos isto que ouvíamos de uma dessas canções da nossa adolescência, e de algum modo batia certo, pois a sensação de desenraizamento deixa margem a uma estranha ânsia de aniquilação. É isso o que secretamente desejávamos quando se falava num ano novo: que se pudesse limpar com um pano molhado aquilo que ficou escrito no quadro, essas noções...
Published 01/04/24
Dantes os pássaros alimentavam-se da carne dos capitães que morriam do outro lado do mundo. Dados como perdidos, a sua lenda desfazia-se em migalhas sustendo esses seres que não têm começo nem fim. A vida aproveita-se deles como de mais nenhuma outra imagem. Esses bandos, tomando o ar do seu canto, deixando ao vento um ar de espanto. E ensinam-nos tanto que, vislumbrando o seu Cabo Finisterra, Manuel de Castro anotou isto: “Tudo tomou rumo diferente do previsto/ – pouso as mãos nas asas...
Published 12/28/23
Nas vésperas deste episódio, o Frederico tomou-se de um febrão daqueles que até os ossos amolecem, e que excitam o tipo de delírios que depois não se podem reproduzir, assim, amarrado à cama como um possuído, desta vez deixou o lugar ao Fernando Ramalho, espécie de Robinson destas saídas à cata do inesperado. Numa altura em que só precisamos de uma rajada mais forte para cair da muralha, abandonar a meio o turno, aí onde cumprimos funções face a um regime cada vez mais precário, cada vez mais...
Published 12/22/23
A promessa de um mundo que começa com uma catástrofe não é necessariamente contraditória, e, no entanto, o futuro ainda só parece fazer-se sentir à distância, e alcança-nos por meio de vislumbres, como um pressentimento. Entretanto, enquanto tudo ao nosso redor lhe resiste, é possível folhear um caderno e ler sobre as variações possíveis do que nos espera. Muito do que está em causa exige de todos um pesado sacrifício e, por isso, uma coragem que terá de ser inventada de novo. Pasolini dizia...
Published 12/13/23
No Telhal ninguém lê Camões, e é pena. Talvez fizessem mais sentido dele. Cá fora os usos que se lhe dão, diga-se de passagem, também não são melhores. Até nos vícios já fomos mais sinceros. Já bebemos com outra honestidade, exactamente por nos sabermos sem escapatória, desertávamos intimamente pondo-nos a inventar com uma ferocidade que por estes dias tem andado desaparecida. Por indisposição do olhar e consequente nervura no pensamento, o nosso sentido de aproveitamento da realidade parece...
Published 12/06/23
O mundo (este ou outro qualquer) é o conjunto de imagens-tendências projectadas a uma mesma velocidade, essa a que o olho humano se pode adaptar, captando-a, do mesmo modo que um receptor de rádio conectado a uma determinada frequência capta modulações que constroem sentido nessa banda sonora. Mas se hoje tudo começa a parecer-nos excessivo, se há ruído demais na frequência, se as imagens se atropelam e nos dão uma perspectiva grande demais para ser abordada, acabamos por nos sentir...
Published 11/30/23
Traficantes de sinais que persistem entre a escória de cada época, cabe aos livreiros um papel fundamental nas operações de resgate e nesse cultivo de uma esperança que, ao contrário do que se pensa, não nasce de uma visão tranquilizadora e optimista, mas de uma laceração da existência vivida e confrontada depois de se lhe arrancar todos os véus. É precisamente isto o que gera uma irreprimível necessidade de resgate. A esperança é, afinal, um conhecimento completo das coisas, e não apenas de...
Published 11/23/23
Este é o primeiro episódio sem a Joana, que não quis mais andar por este jardim cativo de uma feira bruta com menos diversões que tormentos. Bateu com a porta, por isto e por aquilo. Fica-nos esta necessidade de remorso que não altera nada, e se o mais indicado talvez fosse cumprir um certo luto, para quê vir agora observar protocolos quando até aqui o impudor foi o único heroísmo a que nos entregámos, lavando em público a roupa suja da época. Coube ao Frederico Neves Parreira pegar na outra...
Published 11/13/23
Agora que todos os raciocínios são trincheiras, que um homem que se dê ao trabalho de pensar por si ver-se-á empurrado para as catacumbas de si mesmo, sendo condenado ao isolamento, agora que a quantidade impede qualquer revolta contra ela, quem se esforça por dizer palavras verdadeiras não consegue evitar soar ridículo. Ainda andamos de volta dos jornais, guiados pelos avisos de Karl Kraus contra essa "magia negra", sendo que este se deu conta um dia de que a vida já não passava de uma cópia...
Published 11/07/23
Entre os de papo cheio e os manga-de-alpaca que tornam os corredores ainda mais longos e bafientos neste regime miserando, vamos buscando quartos com os estores em baixo, onde "conferenciamos em surdina com as nossas almas, isto é, as peças dos equipamentos espatifados que os nossos inimigos nos deixaram" (Sean Bonney).  Quando se vai em campanha, o jornalismo é a actividade dos batedores, dos que desenham mapas à vista, e é certo que nos aprazaria partirmos daqui, mas só nos restam uns...
Published 10/30/23
Nove séculos depois, com tanto desaire, tantos tombos e ilusões a naufragar neste sangue, está difícil vir tirar do prego as três sílabas que em tempos cunhámos em cobre e nos foram devolvidas em plástico, esta vaga pertença sobre a qual vemos acumularem-se juros impossíveis de saldar na loja de penhores inglesa onde a deixámos, temporariamente apenas, só enquanto nos curávamos de outra carraspana. De lá para cá, ficou tudo a preto-e-branco, só do estrangeiro é que ainda apanhamos uma emissão...
Published 10/19/23
Mesmo entre os que ainda pegam num jornal para o ler, em vez de logo o enrolarem para enxotar alguma mosca, há gente que só lê as páginas de desporto, outros só lêem as páginas de sucessos, outros dedicam-se aos horóscopos, alguns preferem as palavras cruzadas, e há também aqueles que vão direitinhos aos necrológios. Apesar de tudo, há ainda muita gente que não sabe ler, e, entre os que dizem que sabem, tantos passam ao lado de tudo o que importa, mas vão interiorizando a ideia de que é...
Published 10/12/23
Em breve a dor será tida como uma substância ilícita, devendo ser erradicada em regime preventivo com recurso a uma panóplia de fármacos, desde logo estabilizadores de humor. E quem a ela responder em público será alvo de punição. Não há direito a incomodar os que estão a gozar os benefícios de uma existência radiante, e não merecem ser confrontados com o desmazelo dos que se recusam a cumprir com o programa. Está em fase de teste a vacina contra todo o tipo de sofrimentos, os físicos e...
Published 10/02/23
Eça de Queiroz dizia que na sonolência enfastiada em que vivemos, num país onde a vitalidade humana apenas se conserva num egoísmo feroz e numa devoção automática, não nos é dado aspirar a uma existência propriamente, mas tão-só a alguma forma de expiação. Agora os abutres de serviço dizem-se muito empenhados em honrá-lo, mas vão-se esquecendo como, no ambiente de decadência endurecida que é o nosso, ele fez de tudo para abrir um caminho à bordoada, empenhado em ver se haveria um modo de pôr...
Published 09/26/23
Com o transplante da existência para os domínios virtuais, o mais difícil é fazê-los acreditar na realidade. Vivem asfixiados em poços cegos, consumidores de juízos alheios, imersos num zumbido que se torna o predador engendrado pela espécie contra si mesma. São essas ficções infindáveis nas quais em vão procuramos qualquer coisa real para dar ao dente. Apetece citar Ernesto Sabato no seu Relatório Sobre Cegos: “Sempre me fez rir a falta de imaginação desses senhores que julgam que para...
Published 09/03/23
Antes de irmos de férias (ou melhor, antes de vos darmos um período de tréguas), no nosso vigésimo episódio regressamos àquela que é em grande medida a casa da partida, casa de ecos pingados numa música de câmara ardente, casa cheia das marcas de velhos inquilinos, dos que não morrem sem dar luta, e que deixam para trás algum prego só deles, num canto uma ruinazinha que não há maneira de sabermos como resolver. E é com o Changuito que voltamos a ser relembrados daquelas noções mais básicas de...
Published 08/15/23
Nos jornais diários e nos espaços de comentário onde todos os dias a realidade desaparece, enquanto o prestidigitador anda às voltas com ar atarefado a cozinhar uma sopa da pedra na cartola, lá vem a telenovela da anestesia com as catástrofes já habituais: juros da dívida em crescimento, novo corte de salários e pensões, aumento do desemprego, e o administrador de um hospital público que faz contas sobre o que fica mais barato – amputar pernas ou colocar próteses. À margem, num canto...
Published 08/07/23
A vida não é aqui e só raramente nos visita, sendo este mais outro cenário que serve à encenação desses comoventes desenlaces de um mundo que vive de falsas esperanças, ficções hipócritas, dessas faustosas imposturas que, "com uma perversidade certeira, permitem ao sistema de poder do nosso tempo tirar a potência e autoridade a todas as formas que o desafiam, contestam ou lhe criam alternativas reais e ameaçadoras, conseguindo absorvê-las, acomodar, domesticar e falsificá-las, apropriando-se...
Published 07/31/23
Dado o grau de inconsciência, a vida desinteressou-se de nós, e há uma nostalgia do túmulo que se sobrepôs aos nossos desejos. Sendo a realidade aquilo que é, sonha-se com vingança e, artisticamente, talvez esteja na altura de as musas nos darem cabo do canastro. Enquanto isso, aí fora tudo engendra bestas apressadas, industriosos monstros, ao passo que os mundos entrevistos e murmurados na cama enchem-nos de vergonha. Mas agora mais do que nunca era preciso que fosse posto a circular “um...
Published 07/22/23
Andamos a chafurdar em narrativas simplistas, enredos que servem de funil para a moral engarrafada, e há por aí juízos enlatados para todas as ocasiões, por outro lado, a literatura em geral, e o romance em particular, depois deste naufrágio miserável, sobrevive por aí em pequenas ilhas, enquanto no continente vão propondo à circulação toda uma linha de mediocridades híbridas que se alimentam dos resíduos da actualidade e das histórias pessoais. Como notava Milan Kundera, "a maior parte da...
Published 07/17/23
É o que dá andar nisto como quem sai à caça de quimeras: pedimos Quixote, sai-nos um Sancho, vamos aos gambozinos, damos com osgas domésticas, tínhamos visto por aí um crítico desaustinado e afinal damos com outro reitor da Universidade do eu-e-as-coisas-ao-meu-redor. Às vezes é assim. Filho de Júlio Pomar, teve as chaves da chafarica e fez um percurso privilegiadíssimo no jornalismo, impondo-se sobretudo enquanto crítico de arte, com bagagem e conhecimento de causa, sem alergias a desmontar...
Published 07/10/23
Depois de ser dispensada do programa das aulas de português, estava na altura de trazermos de volta essa figura tão malquista como crucial d’Os Lusíadas, esse grande dissidente face aos desvarios de uma certa nobreza que continuamente nos leva a embarcarmos como ratos na nau catrineta das suas fantasias. Numa época de apoucamento da língua, de cedência a toda a ordem de facilitismos, manigâncias e baldrocas, convém mesmo expulsar quem tem muito claro onde tudo isto nos leva. “Lá vem a Velho...
Published 07/03/23
Desta vez, e sendo o episódio 13, isto foi para a desgraça completa. Com uma boa zurrapa a afinar os instrumentos, saímos de submergível, e enfiámo-nos no mar arrastando literatos aos gritos pela mãezinha, a mandarem sms's e a baterem com as chaves e os anéis um morse muito aflito, com instruções sobre como preparar a edição póstuma do conteúdo das suas tantas gavetas. Fomos depressa ao fundo arrastando o meio literário que mais se oferece em todos os portos, e o nosso Ahab foi o Luís Miguel...
Published 06/25/23
"Uma simples frase mais bela, um simples adjectivo mais acertado tem de atravessar imensas camadas de lama e esterco para enfim brilhar. As histórias da literatura só falam do brilho. Mas nunca da esterqueira donde emergiu. E é no esterco que sinto uma grande parte de mim", confessava Vergílio Ferreira no seu diário, e serve-nos isto como balanço quando há tanta resistência a que se fale dos aspectos mais rudes e sujos da edição, e certamente deslustrando os mitos e o prestígio quando o...
Published 06/21/23
Temos tido poucos capitães no nosso espaço literário, poucas oportunidades de nos vermos guiados para alto mar ou sequer alta noite em enormes navios de espelhos, esses onde o tempo se confunde de tal modo que nos oferece o delírio de verdadeiras delícias quiméricas, esses capitães cujo grito ou o silêncio nos inunda o sangue e os nervos de tal modo, de tal modo que através dele todos somos capitães, e quando um entre nós se revolta há logo dez mil insurrectos. Fernando Ramalho, livreiro e...
Published 06/12/23